quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Cena do cotidiano

 Todas as tardes, aproximadamente 17h45 se  sento no banco à espera do ônibus, ao olhar para o lado oposto vejo o vira lata preto e caramelo. Ele está no fundo de um quintal, entre um portão de 1m10 de altura, mais ou menos e uma área verde em declive, com um arbusto, um varal e uma escada de poucos degraus. 

É uma casa um tanto diferente. Comecei a descrever o fundo porque estou interessada no cão mas vale a pena descrever a casa pra dar uma noção exata do cenário.

Nem é tão complicado ou muito diferente, é uma daquelas casas que tem um salão para comércio embaixo e a moradia é em cima. Há uma porta lateral na calçada, que dá acesso à moradia no andar superior. Há a porta do comércio, aquelas antigas, de enrolar. Ali já foi um mercadinho com uma padaria que vendia pão de anteontem. Os locatários tinham outro comércio na rua, vendiam produtos de limpeza. Foram embora há bastante tempo. 

E há uma garagem de entrada lateral. Talvez todo o terreno tenha uns 10m de largura. Esta garagem é estreita, cabe um carro uma lâmpada que ilumina bem pouco. É perceptível uma porta de acesso ao salão e um portão ao fundo, que dá acesso à parte superior da casa. É nesta área que está o vira-lata preto e caramelo.

Se estou no ponto de ônibus por volta de 17h, não vejo o cão mas se são perto de 18h. Ele está lá, focado no portão. Às vezes caminha em direção à porta de entrada da casa do fundo da casa mas rapidamente volta, senta diante do portão que o separa dessa garagem e mantém os olhos no portão de fora. 

Ele vai, vem, senta e observa. E repete o movimento algumas vezes.

A princípio, eu achava que ele olhava as pessoas do outro lado da rua, no ponto de ônibus e que estava esperando uma oportunidade pra latir. Sempre tem alguém ali então, me pareceu coerente mas me dei conta - e foi isso mesmo, um processo de me dar conta, de unir as cenas capturadas durante várias tardes esperando o ônibus, que ele não estava à toa e tinha um propósito.

Sentado, com seu manto preto e o mel rodeando seus olhos tornando o olhar mais doce, ele ansiava por algo e percebi que o rapaz que mora ali, aparenta 20 e poucos anos mas deve ter mais, um rapaz franzino, magro, braços tatuados, cabelo preto sempre bem cortado, aqueles cortes feitos em salão do estilo So-Ho, provavelmente um penteado com pomada, este rapaz chega.semprenno mesmo horário, por volta de 18h, desce do carro, abre o portão, coloca o carro pra dentro, acende a luz incandescente da garagem, fecha o portão e o tranca com a chave e vai em direção ao fundo, acessar a entrada da casa.

O cão, em festa, não pula nele. Rebola muito, saltita um tanto, sobe os degraus  e caminha em direção à porta de entrada da casa e assim, somem. 

Não vejo esse cão em outros horários. Parece que só sai para esperar o rapaz. Ele senta nestes degraus e olha o portão, num misto de ansiedade e paciência. Não falha um dia. Ele sempre está nesta espera, por volta de 18h, entra e não volto a vê-lo até o dia seguinte, mesmo horário.

Esta rotina é permeada de afeto e lealdade. O cão fica genuinamente feliz quando a pessoa que esteve ausente por horas, retorna. A casa não está vazia. O rapaz mora com a mãe. Não sei dizer de há mais alguém morando ali. Durante o dia é possível ver as cortinas brancas da sala e, na janela do quarto, há uma cortina verde abacate maduro com detalhes em branco que às vezes está entreaberta, cumprindo a função de nao permitir acesso de olhares curiosos.

Eu gosto de assistir a espera desse cão. Mal reparo no rapaz. Usa camisa ou camiseta?! Talvez seja camiseta pois vejo as tatuagens nos braços, ou seria em um braço? Um braço fino , magro e a tinta preta, rodeando, sem deixar evidente o que é. Talvez esteja nos dois braços mas me interesso pelo cão que, sem relógio e diante de tantas variações no clima, na luz, na qualidade do ar, na baixa umidade ou com a  presença de fuligem das queimadas que atingiram a cidade ele sabe qual é o momento de esperar o humano ausente chegar. Ele espera com a certeza de quem sabe que o reencontro vai acontecer e a alegria de quem está separado há muitos tempo e não há poucas horas. 

Esta alegria da espera pela chegada de alguém eu já senti. Era criança e aguardava meu pai chegar, por volta das 19h, já era noite, a janta estava praticamente pronta. Era bom tê-lo de volta em casa, contando sobre o dia, as pessoas com quem ele encontrava, fazendo uma matemática pra fechar o orçamento, planejando algo pro futuro, comentando uma coisa aqui e outra ali.

Essa espera por alguém amado é cotidiana, invisível e chega a dar a impressão de que, se estendemos os braços, a mão pode tocar o afeto de tão presente e volumoso que é. São cenas assim que dão saudade e constroem memórias. O rapaz franzino, que tem um carro cinza sobre o qual não sei dizer mais nada, talvez reaja no automático mas um dia vai sentir saudade. É a única certeza que temos, da saudade que virá.


Esta cena tão cotidiana, tão silenciosa - em nenhum momento o cão late, nem ora avisar que a espera terminou. Já vi o rapaz demorar pra chegar, coisa de minutos e estar acompanhado mas o cão não muda a intensidade festa quando vê o carro parado diante do portão que será aberto.

Não sei há quanto tempo ele não anda na rua. Talvez caminhe com alguém e eu não veja. Talvez ele não queira sair dali onde tem tudo o que ele conclui que precisa: comida, conforto e alguns humanos pra ele dedicar afeto.


Pintura by Susan Mogelin


domingo, 22 de setembro de 2024

Tempo, Tempo, Tempo ⚐♡

Diziam que era pau-brasil mas pau-brasil não é

E com esta imagem marco uma visita a este espaço que já fez muito sentido pra mim.
Nestes anos todos muita coisa ficou pelo caminho - e tudo bem!! É assim mesmo.
Outras tantas coisas foram adicionadas - nem sempre por escolha ou por habilidade em me desfazer delas. Ficaram as cicatrizes, tal como no tronco desta árvore.
A melhor maneira que tive, ao longo da minha vida, pra lidar com cicatrizes foi escrevendo mas por traumas, acabei deixando de lado.
Já é tempo de retomar o que me faz bem, mesmo que por exercício verborrágico, de reflexão que se organiza a partir da escrita ou o velho exercício de "botar pra fora e já não me pertencer".

São 6 anos fora daqui e poderia não voltar, encerrar aqui e abrir outro mas a memória é acumulativa e efêmera então, cá estou, com cicatrizes e escoriações mas viva!